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Duas horas,

uma passagem

e uma lição de vida a cada parada

Jeferson Sousa

Por Felipe Gomes e Leilane Freitas

Tão certo quanto o raiar do sol anunciando um novo dia, é certo que às cinco da manhã Jeferson de Sousa, estará no templo de orações da sede de Fortaleza do Instituto Manassés. As preces são pelo dia que se inicia, pelos companheiros de jornada e por uma boa venda. Antes das seis da manhã, o curitibano de 24 anos deixa o número 205 da rua Júlio Lima, na Cidade dos Funcionários, em direção à avenida Oliveira Paiva, onde de posse de um bilhete único, dos kits com canetas e pequenas agendas e da vontade de ajudar o próximo, pega o primeiro ônibus do seu dia.

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Jeferson é, caso você não saiba, mais um daqueles ambulantes que sobem nos coletivos de Fortaleza pedindo um minuto de sua atenção para falar da epidemia social causada pelo consumo de drogas. A cada ônibus cumprimenta o trocador, o motorista e demostra uma espécie de ética. Se já tiver alguém comercializando algo por lá, ele não entra.

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Em sua rotina nos coletivos, convive com a indiferença. Há quem não tenha tempo sequer para dar uma olhada, para perceber o outro. Jeferson diz ter aprendido a conviver com isso, mas, algumas vezes, ainda dói. Procura entender e segue em frente, orientando os demais companheiros de instituição. Percebe que muitos jovens que entram no projeto não sabem lidar com isso. As vezes, um simples olhar pode lhes iluminar o dia e a falta de atenção pode significar o retorno às drogas, um recaída.

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Há dois meses em Fortaleza, não sabe até quando fica. Depende, segundo ele, do chamado de seu supervisor na instituição e de Deus. Apesar da incerteza, gosta daqui. Do clima, da gente e da compreensão das pessoas com seu trabalho. Admite que o preconceito contra ex-usuários de drogas existe, o que o entristece, mas ele entende e não se deixa abalar. Nos coletivos, prefere focar na obra social ao invés da religião. Esta é uma de suas muitas táticas de venda.

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Assim como os demais voluntários da instituição, Jeferson foi dependente químico, em seu caso da cocaína. Se tornou usuário da droga aos 15 anos. Antes disso, aos 14, conheceu o cigarro e o álcool. Aos vinte, o dinheiro que recebia parecia, e era, pouco para alimentar o vício.

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Em nome da dependência, se desfez inclusive de seu carro. Iria comprar um modelo mais barato e gastar a diferença com o consumo da droga. Não deu. Àquela altura a cocaína não se contentava com pouco. 

A família deixa de dormir, ela adoece junto com o dependente químico.

Entrevista

Nós: Como foi seu primeiro contato com as drogas?

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Comecei minha história com o vício com 14: bebida e cigarro. Com 15, eu inicie na cocaína. Eu não tive outro vício. Maconha, essas outras. Só comprimidos, LSD, esse tipo de coisa e a cocaína. Comecei a beber muito cedo, eu via sempre amigos bebendo, bebendo, bebendo e não ficando embriagados. Sempre. A noite inteira eles conseguiam beber e eu bebia um pouco e já “tava” caindo. Daí eu tive a curiosidade de saber porque que eles tinham tanta força (né?!) “pra” beber e comecei. No começo era só final de semana, só “pra” sair, depois já começou no meio da semana já usava um pouquinho. Todo final de semana eu não podia sair sem a minha cocaína. Ai quando eu me afundei mesmo foi aos 19 anos. Aí eu vendi um carro “pra” comprar um mais barato justamente porque faltou dinheiro pra usar droga. Aí eu ia comprar um carro mais barato, mas acabei que eu usei o dinheiro todo em droga, bebida e noitada. Foi aí que percebi que eu precisava de ajuda realmente.

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Nós: Como você chegou até a Manassés?

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Através de um coletivo lá em Curitiba minha madrasta - que a gente não se falava, não se gostava - ela que pegou o informativo. Daí minha mãe ligou “pro” meu pai. Eles já não se falavam há sete anos, voltaram a se falar por causa do meu problema. Daí ele me deu esse informativo e falou “cê” quer ajuda?”, daí ele guardou do lado e falou “o dia que ‘cê’ quiser ajuda, ‘cê’ vem aqui que eu te ajudo”. Aí ele pagou a taxa de matrícula, pagou a passagem e eu fui “pro” Espírito Santo, onde eu fui ajudado por muitas pessoas. Foi aí que começou minha história de mudança, que infelizmente durou um ano mais ou menos. Uns seis meses que eu fiquei na instituição mais uns seis meses que eu saí. Daí depois eu retomei de novo.

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Nós: Como foi a recaída?

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Quase perdi minha vida nessa segunda vez. Fui várias vezes ao hospital pra me costurarem, tomei uma facada na barriga, tomei um tiro no braço. Foi só de raspão, coisas superficiais, mas podia ter sido bem mais sério.

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Nós: Como está a relação da sua família atualmente?

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Fui em Curitiba pela última vez em janeiro. Meu pai na verdade não quer que eu volte mais, né?! Meu pai prefere que eu fique longe, ligando sempre, mantendo o contato mesmo de longe do que eu “tando” lá e ele não conseguir dormir de novo. Ele tem medo, né?! A família deixa de dormir, ela adoece junto com o dependente químico.

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Nós: Como a sociedade recebe o trabalho de vocês?

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A gente hoje é muito ofendido dentro dos coletivos. Com o tempo você aprende a driblar isso, a pensar com alegria, fingir que não ouve e dar um passo “pra” frente. Muito idoso tem uma opinião própria que ninguém muda. Muitos deles pensam que a gente é vagabundo e acabou! Até mesmo pessoas jovens e estudantes. Parece que as pessoas não vêm o que a droga “tá” fazendo com o nosso país. Mas no Brasil, graças a Deus, a aceitação pelo Manasses é boa. Tem um que xinga a gente e mais quatro que vão sempre apoiar. É isso aí, “vamu” levantar a cabeça e correr atrás.

Foto: Leilane Freitas

Jeferson divulgando o trabalho da Instituição Manassés.

Foto: Leilane Freitas

A Instituição Social Manassés na Rua Julio Lima, 205, no bairro Cidade dos Funcionários.

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Nós: Como você se sente quando as pessoas não dão atenção ao seu trabalho?

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A gente se sente desrespeitado, se sente chateado. Eu sinto que as pessoas não estão nem aí “pro” que tá acontecendo. O amor pelo próximo, eu vejo, que “tá” se acabando dia após dia. Eu entendo também que hoje em dia tem muitos vendedores nos coletivos, o que acaba atrapalhando. Muitos até pra usar droga, a gente vê, tá na cara. Mas um projeto como o nosso que nós falamos a verdade, as pessoas não olham, não seguram. Hoje “cê” entra num coletivo, a primeira coisa que eu olho é quantas pessoas estão com fone de ouvido, quantas “tão” com celular. Quem “tá” com telefone celular eu não entrego, ela só vai colocar no colo e vai continuar vendo vídeo no Whatsapp, numa conversa. Então ali eu não perco o meu tempo. Infelizmente é o que acontece hoje. Mas é como eu disse “pra” vocês, nós não sabemos o que tá se passando na casa dessa família, dessa pessoa, se ele tá com algum problema muito pior do que o nosso. Então o que tenta me confortar é justamente isso. Em cada coletivo que eu subo o que tenta me confortar é que as vezes tem pessoas passando por dificuldades. E é onde eu dobro meus joelhos e peço a Deus que toque a mão dessas pessoas.

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Nós: Você enfrenta muitos problemas com os outros internos da Manassés?

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Às vezes tem “cara” que faz tanta coisa errada dentro da casa, daí senta eu e o meu supervisor e... "pois é, vamos mandar “pra” casa ou não?". No fim a gente conversa três, quatro vezes... porque a gente sabe que o futuro de um dependente químico é imprevisível, totalmente imprevisível. Você pode “tá” aqui, depois tá numa boca de fumo e tomar um tiro e infelizmente vir a óbito. É isso o que a gente tenta passar “pra” eles também. Que pode estar sendo a última oportunidade “pra” eles.

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Nós: O que é Deus representa para você?

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Bom, a gente estuda muito a bíblia. O que eu acredito é que Deus tem um propósito para cada um de nós. Eu acredito que se Deus me colocou num lugar desse é porque ele tem um propósito “pra” mim. Então eu não vou fazer nada que não seja da vontade de Deus. Quando eu sentir no meu coração que eu devo sair, aí eu vou seguir meu caminho.

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Nós: O que você faz sobre o problema social das drogas?

 

Já vi pessoas tirarem dinheiro “pra” comprar um kit e tirar cachimbo de crack junto, isqueiro e ajudar. Outro jogando isqueiro e cachimbo pela janela e tirando uma Bíblia. É até cômico. As pessoas estão desesperadas. Só quem “tá” no mundo da droga pra saber o desespero que é você viver e não conseguir sair. Não conseguir sair. Infelizmente é essa a realidade. O país hoje “tá” sofrendo um surto muito grande. O país não, é o mundo inteiro. E infelizmente o governo, na verdade, “pra” falar bem a realidade não sabe o que fazer. “Tá” tentando de tudo mas eles não sabe o que fazer.

 

Nós: Que área profissional você pretende atuar, caso volte a estudar?

 

Eu pensei muito na área de mecânica, mas seria mais pelo meu pai que sempre sonhou isso. Mas se eu falar “pra” vocês que eu penso em ser professor de educação física?! Ou enfermeiro, talvez. Penso alguma coisa nessa área. Fisioterapia, talvez, mas não mecânica. Vou deixar de lado um pouco. Quem sabe como um hobby. Não sei também até quando vou ficar na instituição. Vai depender.

Foto: Leilane Freitas

Instituição Manassés.

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Comecei minha história com o vício com 14, bebida e cigarro. Com 15 eu inicie na cocaína.

Jeferson também divulga seu trabalho em lugares com grande concentração de pessoas

Primeiro os bens materiais, depois os laços familiares. A já complicada relação de Jeferson com a família ficara insustentável. Dias e noites fora de casa, seguidos por telefonemas que contavam sobre tiros, facadas e overdoses, duas em um período de dois anos. Como ele próprio diz, a família sempre adoece junto com o dependente químico.

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Aos poucos, se percebeu no vício. Viu que não poderia parar a qualquer momento. A mudança se deu em seis meses de tratamento no Instituto Manassés do Espirito Santo. A primeira fase do tratamento se seguiu de uma nova recaída e de uma nova chance. Livre do vício há dois anos, se dedica em tempo integral a obra da instituição. Recebe 20% do valor arrecadado com as vendas, quantia bem diferente da média de quatro mil reais que recebia trabalhando como mecânico de automóveis.

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Não pensa em voltar a morar em Curitiba. Agora, prefere continuar fazendo parte do projeto e ajudando a salvar vidas. Sua família também prefere que fique longe. Longe do lar, mas também longe das amizades e dos lugares que quase o destruíram. Desde que se libertou da cocaína já passou pelas unidades de Salvador, Aracaju e de Vitória e, se necessário for, diz que vai para qualquer outro lugar, “depende do chamado”. Tem planos de voltar a estudar de fazer uma faculdade e de se apaixonar – embora não possa ser qualquer uma, segundo ele.

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Em duas horas, tempo que ele tem para aproveitar apenas uma passagem no bilhete único, fomos do Papicu ao Centro, da descontração à temas mais sombrios, do medo do inesperado à rotina em cada coletivo. Pegamos cinco ônibus e o acompanhamos até o Ginásio Paulo Sarasate, onde aproveitou um mutirão da justiça eleitoral para vender mais kits. Segundo ele, fomos "pé quente". A manhã foi de boas vendas.

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Vivenciamos e dividimos o tempo de Jeferson fazendo girar a corrente do bem, que segundo ele, o salvou da morte. Vimos o quão frágil é a felicidade juvenil e como pequenos momentos e pequenas conquistas podem fazer toda diferença na trajetória de quem teve que reaprender a viver. Entre uma parada e outra o questionamos sobre os estágios da dependência, sobre a recepção das pessoas quanto ao seu trabalho, sobre sua família e sobre a instituição.

Comecei minha história com o vício com 14, bebida e cigarro. Com 15 eu inicie na cocaína.

Foto: Leilane Freitas

Jeferson também divulga seu trabalho em lugares com grande concentração de pessoas.

Quem somos

Felipe Gomes

Sou jornalista em formação pela FA7, mas concebido de tanto ouvir histórias de uma Fortaleza de outros tempos na barra da saia da minha bisavó. Entrei na faculdade para falar de coisas. Vou sair para falar de gente. Valorizando a serenidade na troca de um olhar, a subjetividade de um gesto e o que é dito além da fala. Tenho 23 anos e tudo que eu preciso é de uma próxima história para ouvir e depois contar, pode até ser a sua.

Leilane Freitas

Sou jornalista em formação e amante da cultura brasileira. Minhas inspirações nascem em cada novo olhar que encontro no dia-a-dia. Acredito que aproveitei bastante esses 23 anos de existência. Teatro, dança, viagens e de todas essas experiências trago recompensas eternas. Amo o mar e a paz que me traz, sou amante da simplicidade da vida e das pessoas. Ainda acredito nas palavras.

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